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MLucia Montenegro

Pode a fiscalização tributáriaria lançar exigências fiscais com base nas redes sociais?






Recentemente vimos notícias da própria Receita Federal [1] que está a utilizar-se das redes sociais para fins de fiscalização tributária. Ela afirma que as informações das redes sociais são utilizadas de forma rotineira na análise e seleção de contribuintes. É comum que o Auditor-Fiscal analise as redes para identificar bens e possíveis interpostas pessoas nos relacionamentos do contribuinte. Ou seja, buscam identificar um suposto “laranja”, que esvaziaria o patrimônio do verdadeiro contribuinte.


Afora tal levantamento direto pelo Auditor-Fiscal, ainda, a Receita Federal é dotada de um modelo de inteligência artificial que fazem verdadeira varredura na vida do contribuinte, realizando buscas e incluindo informações para a seleção do contribuinte.


Somam-se outros indícios, tais como informações bancárias, cartórios, veículos, recebimento de alugueis e uma gama infinita de informações disponíveis na rede também.


Finaliza a matéria informando que, nestas condições, responsabilizaram e autuaram mais de 2000 contribuintes, com valor sonegado na ordem de 1 bilhão de reais.


Feito este ponto de situação, comecei a pensar na ilegalidade e abusividade da fiscalização tributária, como já aconteceu no passado e obrigou ao Poder Judiciário uma análise mais detida sobre o assunto.


Lá atrás, discutia-se sobre a possibilidade de o Fisco adentrar no estabelecimento do contribuinte e fazer a apreensão de todo e qualquer documento ou outro objeto que julgasse necessário para a fiscalização e posterior autuação. Nesta ocasião, não raras vezes, a fiscalização abria armários, gavetas e arquivos, chegando ao desatino de apreender HD de computador, livros, cadernos e qualquer coisa que entendesse pertinente a sua fiscalização.


Tudo, com a polícia à porta, impedindo a entrada e a saída de qualquer pessoa do estabelecimento, e sem a apresentação de um mandado judicial.


Nessa época, iniciou-se um grande debate sobre os direitos e deveres não só do contribuinte, como também o dever legal a que está sujeita a fiscalização no cumprimento de suas funções.


Em síntese, passou-se a discutir se o estabelecimento comercial era equiparado à casa, que possuía proteção constitucional e não poderia ser violada, senão por ordem judicial. Acrescentava-se a isso, também, a extensão dos poderes da fiscalização, sendo que os mesmos não poderiam, arbitrariamente, apreender documentos sem mandado respectivo.

Ou seja, a fiscalização, em condições normais, somente poderia exigir a exibição destes documentos, mas nunca apreendê-los sem portar uma autorização judicial.


Entendia-se que estavam na berlinda os direitos do cidadão à inviolabilidade a sua vida privada e a sua intimidade. Era flagrantemente inconstitucional a violação do estabelecimento que se equiparava à casa, naquela situação em questão. A presença da polícia também se apresentava ao contribuinte como um excesso e um meio de atemorização infundada.


E é a partir dessas ideias que vem-me à cabeça a discussão da utilização dos dados constantes em redes sociais do contribuinte, a bel prazer da fiscalização tributária, em verdadeira devassa de sua vida privada e de sua intimidade.


Não é demais dizermos, em primeiro plano, que a Constituição Federal, em seu art. 5º, inciso X e XII, prevê expressamente a proteção dos dados do cidadão, em atenção ao direito fundamental à intimidade, à vida privada, à honra e à imagem das pessoas, assegurada a indenização pela violação e abalo moral.


Dentro deste conceito cabe não só documentos, mas também, imagens, vídeos, livros e tudo o mais que diga respeito a essa intimidade.


Na atualidade, temos para amparar essa proteção, o RGPD do Parlamento Europeu, de 2016. Muito embora este regulamento importe para os eventos ocorrentes no espaço europeu, não nega-se a importância deste no contexto econômico mundial, pelo que também não se pode ficar à margem das suas disposições, ainda que de cunho informativo.


Não seria inoportuno trazermos o considerando nº 2, a saber: “Os princípios e as regras em matéria de proteção das pessoas singulares relativamente ao tratamento dos seus dados pessoais deverão respeitar, independentemente da nacionalidade ou do local de residência dessas pessoas, os seus direitos e liberdades fundamentais, nomeadamente o direito à proteção dos dados pessoais.”


Já o considerando nº 40: “Para que o tratamento seja lícito, os dados pessoais deverão ser tratados com base no consentimento da titular dos dados em causa ou noutro fundamento legítimo, previsto por lei,...”


Já em nossa legislação pátria, é no artigo 2° da Lei Geral de Proteção aos Dados - LGPD que encontramos a proteção e respeito à privacidade, a inviolabilidade da intimidade, da honra e da imagem, e, no artigo 7º o consentimento do titular para o caso de tratamento dos dados.


Por outro lado, o artigo 4º da LGPD enuncia os casos em que a lei não se aplica, podendo destacar o inciso III, d: “atividades de investigação e repressão de infrações penais.”


A questão aqui a saber é se a fiscalização tributária pode, ao argumento deste dispositivo legal, fazer uso indiscriminado dos dados constantes em rede social e então proceder a autos de infração. Penso eu que não.


Salvo estudos mais apurados que hão de vir, o fim - mera fiscalização tributária - não justifica o meio. Não pode a fiscalização tributária, ao argumento de dar cumprimento à legislação tributária e a um pseudo crime, pautar uma fiscalização com base em um “passeio” pelas redes sociais dos contribuintes. E após esse “passeio” indiscreto, buscar elementos que sugerem ratificar uma autuação lícita e legítima.


Sabemos que a atividade fiscalizatória é um poder discricionário, mas, por outro lado, vinculado à lei. Sendo assim, a autoridade tributária está limitada aos princípios constitucionais administrativos: legalidade, moralidade, impessoalidade, razoabilidade, publicidade e eficiência.


Vale também registrar que, dentro disso, o trabalho da fiscalização deve ser atrelado ao exame de documentos que guardem relação ao fato gerador investigado, não sendo possível admitir a utilização de dados e imagens pessoais, sem consentimento, e que não possuem relação ao fato gerador em questão.


Muito embora a autoridade tributária possa muito, ela não pode tudo, indiscriminadamente!


Ao contrário: não pode ultrapassar os direitos e garantias constitucionais dos contribuintes à intimidade e à vida pessoal, e bisbilhotar a vida do contribuinte.


E se o direito (de per si) não é absoluto ao contribuinte, também podemos dizer que igualmente não o é (absoluto) ao fisco, pelo que seu direito fiscalizatório não pode-se dar em bases inconstitucionais.


Com tudo isso, entendo que muito “pano para manga” e “muita água” vai rolar, e que sobre esta questão deverá se debruçar o Poder Judiciário, com a devida proteção ao contribuinte e aos princípios constitucionais.










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[1] https://receita.economia.gov.br/noticias/ascom/2017/marco/receita-federal-analisa-as-informações-de-redes-sociais


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